No Brasil, a população das Mulheres Transexuais e Travestis sempre foi historicamente perseguida, estigmatizada, discriminada e marginalizada a partir de uma determinada crença médica biologizante da sua “anormalidade patológica” diante da heterocisnormatividade hegemônica. A partir do século XVI, surgiram novas leis que buscavam ditar as condutas para as normas sociais e até o modo correto de se vestir com o gênero biológico de nascimento.

Poucos registros históricos falam sobre a existência de mulheres transexuais e travestis ou de pessoas que iam contra essas ditas leis e que desviavam desta lógica de “normalidade”.

A decolonialidade da matripotência objetiva uma construção do conhecimento que valorize os saberes de grupos ou comunidades de Mulheres Transexuais e Travestis, Negras e também de Axé, que foram, por inúmeros anos, subalternizadas e subordinadas, mas que sempre relutaram, resistiram e agora estão emergindo de forma resiliente e tem como foco principal a realidade e complexidade das Casas de Candomblé e Terreiros de Axé Brasileiros como gênero feminino e como Iyálòrìṣás, Mam’ètos, Donés, Nochès, Égbónmis, Mãe-de-Santo, Ìyápèṭèḅ í, Ìyánífá, etc...

Então, nós como CONATT – Conexão Nacional de Mulheres Transexuais e Travestis de Axé, movimento social organizado de Mulheres Transexuais e Travestis Brasileiras, Negras e também de Axé escolhemos converter uma experiência totalmente negativa, que foi o período escravagistas e patologizante da Transexualidade e Travestilidade, em algo categórico e positivo. Não que essas ditaduras cishegemônicas, aqui no Brasil possam ser esquecidas, porém nós buscamos nessa situação adversa, que foi bastante pesada e dolorosa para todas nós, enquanto mulheres de axé e população negra, trazer o lado bom de tudo isso, bem como os aprendizados obtidos a partir das vivências das transexualidades, travestilidades e negritudes brasileiras, como o “pajubá” ou “bajubá”.

Pois, enquanto uma Mulher Transexual ou Travesti, Negra, de Periferia e também de Axé for somente vista como um corpo que carrega todos os estigmas e estereótipos que a sociedade patriarcal, fundamentalista e machista, marginaliza, mata e exclui, falar sobre representatividade feminina e em ser Mulher, é falar sobre os corpos invisíveis socialmente e, questionar onde esses corpos estão... Não! É porque não nos dão oportunidades, de educação, de trabalho e de vivermos socialmente como cidadãs. Isso é porque nossos corpos socialmente não existem, são excluídos, são corpos abjetos, são corpos invisíveis e são tratados única eexclusivamente com misoginia, intolerância transfóbica e racismo religioso.

O “cistema” de justiça brasileiro, mesmo com os avanços recentes, apesar de morosos, ou seja bem demorados, nos direitos civis e sociais, sobre a criminalização da transfobia e a retificação dos documentos pessoais, dessa parcela da população, ainda está muito aquém de se tornar uma sociedade que aceita, insere e inclui as diferentes formas de identidade e expressão de gênero feminino do “si mesmo”. Por mais que haja inúmeros questionamentos na valorização do “colorismo” e da “passabilidade”, em um país onde as agressividades sociais, o transfeminicídio e o travesticídio são gritantes e as humilhações de intolerância transfóbica e transfobia recreativa, são vistas com tamanha facilidade, como “brincadeiras à toa”, uma normalidade e total romantismo; em um país onde proíbem mulheres transexuais e travestis de usarem banheiros públicos com o mínimo de conforto e onde essa parcela da população de mulheres são negligenciadas, excluídas, marginalizadas e assassinadas cotidianamente, exatamente por serem quem são e por não terem nascido na condição de serem diferentes da heteronormatividade cisgênera, ter “pele não retinta”, ser “passável” e relatar que são “espíritas” ou “católicas”, se tornou uma “vantagem” que, infelizmente, chega a se fazer necessária, para não perder oportunidades e não passar por tanto preconceito.

As mulheres, ao longo de toda a história da humanidade, existem e resistem, nas mais variadas cores, raças, nações, formas, tamanhos, corpos e, corporalidades. Há inúmeras e tantas formas de ser mulher quantas forem elas no mundo. De acordo com o senso comum, o ‘ser mulher' geralmente está atrelado à ideia de feminino, de feminilidade, de mulheridade, que, por vezes, é bastante estereotipada. Na cultura ocidental, as mulheres deveriam ser passivas, dóceis, emotivas, assim como deveriam possuir cabelos compridos, seios e, principalmente, uma vagina e, parir. E, dotadas de uma vagina, elas deveriam vestir-se e comportar-se de forma recatada e consoante, apenas se interessando sexualmente pelo seu oposto, ou seja, pelo gênero masculino, mas que seja um homem, másculo e detentor de um pênis, para constituir uma “família tradicional”. Porém, esse modelo idealizado de mulher (e de ser humano) jamais existiu. Nascer com uma genitália tida como feminina não define como o ser humano vai se identificar, ou se expressar, futuramente, nem sua sexualidade. Existem outros arranjos corporais que vão muito além do binômio “mulher-vagina”.

Mulheres são mulheres, independente do gênero designado no momento do nascimento, independente da genitália, uma genitália não caracteriza ninguém, pois Ser Mulher transcende isso.

Existem mulheres que nasceram com vulva e vagina, assim como existem mulheres que nasceram sem vulva e sem vagina. Existem mulheres que nasceram com útero, ovários e trompas, assim como existem mulheres que nasceram sem útero, sem ovários e sem trompas. Existem mulheres que nasceram com pênis, próstata e testículos, assim como existem mulheres que nasceram sem pênis, sem próstata e sem testículos. Existem mulheres que nasceram com cromossomos XX, assim como existem mulheres que nasceram com cromossomos XY.

Esperamos um dia poder ver mulheres transexuais e travestis trabalhando e atuando em todos os setores profissionais, sem estigmas, sem rótulos, sem marcas, apenas sendo vistas e tratadas como mulheres, por suas habilidades e competências, nada mais!

Portanto, não se pode construir um estado democrático de direito pleno sem observar as Vulnerabilidades Sociais, as Demandas, a Inserção e a Inclusão Estratégica das Mulheres Transexuais e Travestis, Negras e também de Axé inseridas na estrutura governamental brasileira.

Autoria
É formada em Serviço Social pela UNESP de Franca-SP; Pós-Graduada em Direitos Humanos e Sexualidade pela UERJ; Coordenadora Nacional da CONATT; Secretária Executiva Geral da ANTRA; Coordenadora Estadual do FONATRANS em São Paulo; Presidenta do Instituto APHRODITTE-SP; Integrante da Comissão LGBTI da ALESP; Coordenadora Adjunta do FPLGBTI e colaboradora do CCN Notícias.
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